Artigo, Érica Gorga, Estadão - Assalto' recorrente a aposentadorias


Toda a sorte de desvios, como os verificados recentemente, é veladamente incentivada

Não bastassem as fraudes bilionárias nos fundos de pensão de empresas públicas (Postalis, Serpros, Funcef) e sociedades de economia mista (Petros, Previ) – que referi no artigo A outra previdência, de 15/11/2017 –, surgem novas modalidades de desvios bilionários da aposentadoria de servidores municipais em até 200 cidades (Estado, 7/5). Institutos de previdência municipais aplicavam recursos em fundos de investimento que adquiriram debêntures sem lastro, emitidas por empresas de fachada com patrimônio incompatível com os títulos de dívida lançados sem garantias adequadas (Folha, Estado e G1, 12/4).

Estima-se que o rombo de investimentos análogos em renda fixa alcance cerca de R$ 15 bilhões (Estado, 7/5). Além de empresários, ex-gestores de institutos de previdência e autoridades municipais, foram presos na Operação Encilhamento (desdobramento da Papel Fantasma) da Polícia Federal executivos de corretoras e bancos de investimento, consultores, advogados, contadores e gestores de recursos. Tais profissionais, chamados pelo professor John C. Coffee Jr. da Columbia Law School de “guardiões” do bom funcionamento do mercado, em vez de desempenharem suas funções de modo independente e efetivo, teriam contribuído ativamente para montar esquemas de desvios. Na obra Gatekeepers: The Role of the Professions in Corporate Governance (Guardiões: o papel das profissões na governança corporativa), ele conclui que falhas desses profissionais e do sistema de responsabilização e punição explicam as vultosas fraudes corporativas americanas da Enron e da WorldCom.

Tal e qual devem ser apontadas condutas questionáveis e até espúrias de tais profissionais nos casos nacionais de corrupção sistêmica. Aqui sobressai a incapacidade dos reguladores, em especial da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e da Superintendência Nacional de Previdência Complementar (Previc) de supervisionar entidades emissoras e gestoras de investimentos.

Foi preso o irmão do presidente da CVM, Henrique Santos Barbosa, que, segundo a revista Veja (12/4), supostamente “atuava como operador financeiro do esquema no Postalis” ligado ao empresário Arthur Pinheiro Machado, também detido. A emissão das debêntures frias pelas empresas fantasma foi chancelada pela CVM, indicando fragilidades na sua função fiscalizatória (Folha, 12/4). O referido empresário possui nada menos “que 100 empresas ligadas ao CPF dele” (G1, 12/4).

Ao que consta, a agência reguladora teria autorizado a emissão dos títulos de dívida por diversas empresas legalmente representadas pelo empresário. Supõe-se que a CVM tenha um sistema de informações que discrimine, no mínimo, o número de emissões de títulos, o valor dos recursos a serem captados e os responsáveis legais pelas emissões das empresas envolvidas e das instituições intermediárias e custodiantes, incluindo o agente fiduciário dos debenturistas.

Afastada a remota hipótese de o empresário ser o “Warren Buffet brasileiro”, ou seja, um megainvestidor com reputação por empreender ao mesmo tempo inúmeros negócios sólidos, surpreende que a CVM tenha deixado passar inúmeras operações com títulos de dívida de empresas por ele representadas, sem verificar se elas efetivamente existiam no mundo real e com capacidade para assumirem dívidas a serem pagas com remuneração aos adquirentes dos títulos – os fundos. Afinal, nenhum sistema ex-ante de controle funciona sem a mínima verificação de legitimidade das operações financeiras submetidas à apreciação da agência reguladora, sem o que a finalidade preventiva de fraudes – uma das funções primordiais do regulador – é seriamente comprometida.

Resulta que os recolhimentos de servidores ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) aplicados em fundos que investiram em títulos não pagos ocasionam prejuízos para o pagamento a aposentados e pensionistas, expondo mais uma vez grave problema do sistema previdenciário, negligenciado pelo debate atual das reformas: prejuízos bilionários causados por fraudes e custeados forçadamente por funcionários da ativa, aposentados e pensionistas. Por isso as propostas de reforma da Previdência não podem englobar apenas a questão do envelhecimento da população ou as benesses da elite do funcionalismo.

Não se mensura hoje nos cálculos atuariais das contribuições previdenciárias quanto é impingido aos trabalhadores em decorrência de perdas com fraudes e má gestão do sistema previdenciário. É problema metodológico sério, já que prejuízos por má gestão e fraudes não devem recair sobre os contribuintes, mas, sim, sobre os responsáveis pela gestão dos recursos e perpetradores de ilícitos.

Pior, a Lei 109/2001, em seu artigo 21, § 1.º, prevê que o equacionamento de déficits das entidades de previdência poderá ser resolvido “por meio do aumento do valor das contribuições, instituição de contribuição adicional ou redução do valor dos benefícios a conceder”. Assim, onera somente os trabalhadores pelos déficits de fraudes bilionárias, relegando a busca de indenização a eventual “ação regressiva contra dirigentes ou terceiros” que deram causa ao dano.

Hoje inexiste a obrigação da propositura das ações regressivas indenizatórias, que muitas vezes nem sequer são iniciadas na Justiça, dependendo da vontade dos dirigentes da entidade previdenciária, que poderão até ser os mesmos envolvidos nas fraudes.

Como se vê, o sistema é eivado de conflitos e alicerçado sem tutela ou segurança jurídica adequadas que propiciem a responsabilização de infratores. A conclusão é que toda sorte de desvios como os recentemente ocorridos é veladamente incentivada.

*DOUTORA EM DIREITO PELA USP, COM PÓS-DOUTORAMENTO NA UNIVERSIDADE DO TEXAS, FOI PROFESSORA NAS UNIVERSIDADES DO TEXAS, CORNELL E VANDERBILT, DIRETORA DO CENTRO DE DIREITO EMPRESARIAL DA YALE LAW SCHOOL E PESQUISADORA EM STANFORD E YALE

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