Só milagre salva o país

Hannah Arendt parece falar do Brasil de hoje quando pergunta: ‘Será que a política ainda tem de algum modo um sentido?’

Nem será preciso pedir licença à Ciência. O conceito de milagre na política se origina de articulações de Hannah Arendt e se aplica ao nosso horror cotidiano. Inquietante é precisar da esperança de vê-lo surgir neste momento. Um lado kleiniano me cobra: a expectativa do milagre é o reverso de uma penosa situação.

Não era para dar certo, mas o milagre da vida surgiu contra as “impossibilidades infinitas”. Nas ocupações humanas, além do acaso natural, há um fabricante do milagre: o homem é bem dotado para fazê-lo. Não exatamente um milagre econômico, que dispensou a democracia, ou o fraudulento milagre lulopetista, que usaria a democracia para não exercê-la de forma republicana.

A desastrada Dilma Rousseff foi um milagre negativo, que detonou o projeto petista de perpetuação no poder. Deslegitimou-o com má gestão e produziu grave crise econômica.

O impeachment abortou de Brasília alguns dos piores inimigos íntimos da democracia, mas outros iriam surgir em seguida.

E o que dizer do acaso da descoberta do doleiro Alberto Youssef, causando a Operação Lava-Jato, despertando a ação dos procuradores e juízes, os integrantes da Polícia Federal — todos atentos à investigação do que se passa nos porões da República brasileira.

Estes milagres anunciam os que virão para reconstruir a política. Aliás, o que ainda dizer das inexplicáveis manifestações de junho de 2013 em todo o Brasil?

Ao descrédito dos políticos se opõe a dignidade da política, o valor do agir, aquele que, de forma consciente ou não, provoca um processo. A emergência súbita do novo, na percepção histórica de Hannah Arendt, se dá de forma inesperada, imprevisível e, por fim, inexplicável para o raciocínio causal: passa a “figurar como um milagre na conexão dos acontecimentos previsíveis”.

A pensadora alemã, morta em 1975, parece falar do Brasil de hoje, quando pergunta: “Será que a política ainda tem de algum modo um sentido?” Esta questão lhe foi despertada pelo desastre que a política já provocou e ainda é capaz de causar.

Confundir a política com políticos brasileiros da atualidade — de todos os partidos —, ou com a aliança espúria, promíscua e sistêmica com setores do grande capital, que tomou de assalto o Estado, é o mesmo que enterrar a esperança e desacreditar do milagre. De alguma maneira, o cinismo e o descrédito tornam-se cúmplices do que se pretende combater.

Não é por acaso que foi lembrada recentemente a frase do pensador italiano Antonio Gramsci: “O velho resiste em morrer, e o novo não consegue nascer”. Mas este já está em gestação, enquanto aquele prepara o funeral.
Mas o tempo da vida e da morte tem seu próprio critério, e não depende de pressa ou angústia. Não é preciso acreditar em milagre religioso ou sobrenatural — mas rezar menos e agir mais. Há um processo em andamento, homens em ação, aptos a provocar e resgatar a dignidade na política, a ética na gestão. A vida pulsa e reage a seus inimigos. Na ação, os homens, portando bandeira ética, são “aptos a realizar o improvável e o imprevisível”, como diria Arendt.

Jovens brasileiros (Foto: Pixabay)

Paulo Sternick é psicanalista

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